A Ferrari e até a FIA estão no banco dos réus

Entenda a série de episódios que expõe os poderes quase sobrenaturais da Ferrari na F1. Adversários prometem reação

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Livio Oricchio
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É bem verdade que a comoção mundial provocada pela Covid-19 tem quase monopolizado as atenções dos líderes da F1. Como dar a largada para o campeonato é o maior desafio, considerando-se o necessário isolamento social para conter a expansão da pandemia.

Mas não é só isso que está gerando frequentes telefonemas e vídeoconferências entre os diretores de seis das dez equipes da F1. Eles ainda exigem da Federação Internacional de Automobilismo (FIA) uma explicação convincente sobre o impensável acordo secreto estabelecido entre o seu presidente, Jean Todt, e Mattia Binotto, diretor da Ferrari.

Os seis diretores ainda não excluem a possibilidade de recorrer à justiça comum para fazer valer seus direitos. Pelo simples motivo de a FIA não divulgar o que a sua longa investigação encontrou de irregular no carro da Ferrari, no fim do ano passado, pois sabe-se que foi punida.

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Se as instituições não tivessem cessado suas atividades por causa da Covid-19, é bem provável que a F1 estaria hoje no tribunal.

Você talvez se lembre do caso. Como em um passe de mágica, na segunda metade da temporada de 2019 Charles Leclec e Sebastian Vettel, pilotos da Ferrari, passaram a usar uma unidade motriz, ou motor, que lhes dava bem mais cavalos de potência que o dos adversários. Era algo absolutamente visível. Passaram a dominar a F1.

Fórmula 1 Gp Da Bélgica 2019 2
Sequência de vitórias da Ferrari, a começar pelo 1<sup>o</sup> lugar de Leclerc na Bélgica, levantou suspeitas
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Façamos assim: que tal resgatarmos essa história, em detalhes, desde o princípio, para entendermos melhor o que vem aí pela frente na F1, tão logo o coronavírus permita?

O caso, passo a passo

A Ferrari entrou de férias com a F1, em 2019, depois do GP da Hungria, disputado dia 4 de agosto, sem que Leclerc ou Vettel tivessem conquistado nenhuma vitória nas 12 corridas realizadas.

O campeonato foi retomado com o GP da Bélgica, dia 1º de setembro. De repente, a partir daí, a equipe italiana estabeleceu seis pole positions seguidas e venceu os três primeiros GPs: Bélgica e Itália, com Leclerc, e Singapura, com Vettel.

A impressionante velocidade do modelo SF90 italiano nas retas levou o futuro vencedor do mundial de 2019, Lewis Hamilton, da Mercedes, a afirmar: “Nós não temos como acompanhá-los (Leclerc e Vettel), estão muito mais rápidos. Se não descobrirmos o que os tornou tão velozes e colocarmos no nosso carro, não ganharemos mais nenhum GP”.

Depois da alucinante festa dos tifosi, ao pé do pódio em Monza, com Leclerc celebrando a vitória, os adversários da Ferrari, de nariz torcido, se perguntavam o que o grupo técnico liderado por Binotto havia descoberto para transformar uma temporada que parecia perdida para a Ferrari em muito promissora.

Evolução suspeita

Toto Wolff, sócio e diretor da Mercedes, comentou: “Em reunião com Andy (Andy Cowell, diretor da seção das unidades motrizes da Mercedes), chegamos à conclusão de que não há como você ganhar tanta potência de uma hora para outra através apenas do desenvolvimento normal do motor. Não estou dizendo que o recurso da Ferrari é ilegal, mas eles acharam um caminho para driblar o regulamento”.

Havia já uma suspeita: os engenheiros italianos teriam encontrado uma maneira de fazer com que gasolina além do máximo permitido passasse pelo sensor de fluxo sem que o sistema, controlado pela FIA, detectasse a irregularidade.

Largada do Gp Da Itália 2019 com o carro da Ferrari apontando em primeiro na primeira curva
GP da Itália 2019: Ferrari estaria "enganando" o sensor que controla o fluxo de combustível dos carros
Crédito: Divulgação
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O regulamento estabelece que o fluxo máximo de combustível do tanque para a unidade motriz é de 100 quilos por hora, algo como 118 litros por hora. O pequeno dispositivo instalado pela FIA em todos os carros, a fim de verificar se elas estão respeitando a regra, tinha um único sensor.

Segundo os técnicos concorrentes da Ferrari, os italianos entenderam como "enganar" esse sensor. Era isso que explicava a maior velocidade do modelo SF90 da Ferrari nas retas: a maior potência permitida pelo fluxo maior de combustível.

Pressões para checar tudo

Christian Horner, diretor da Red Bull-Honda, estava como Wolff, indignado com o que assistia nas pistas. Seu consultor com poder de diretor, Helmut Marko, disse aos jornalistas: “Nós estamos questionando a legalidade do carro da Ferrari. Precisamos que a FIA faça uma checagem minuciosa do motor dos carros de Charles e Sebastian”.

A FIA atendeu. No GP dos Estados Unidos, disputado dia 3 de novembro, 19º do calendário, a entidade distribuiu comunicado para informar ter revisto seu sistema de detecção do fluxo de gasolina. Estava, agora, mais rigoroso e preciso, com a introdução de um segundo sensor no seu próprio dispositivo.

O que aconteceu? Também como em um passe de mágica, Leclerc e Vettel perderam competitividade. Os profissionais da F1 não escondiam não ser uma coincidência, apenas. Max Verstappen, da Red Bull, não se conteve: “Eles deixaram de vencer, não”?

Cenenas de torcedores da Ferrari se aglomeram para comemorar a vitória da equipe italiana no Gp Da Itália 2019 1
Os italianos foram à loucura com a vitória de Leclerc em Monza. Triunfo contestado
Crédito: Divulgação
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Os resultados alimentaram a suspeita de algo fora das regras na unidade motriz Ferrari. Depois da normativa da FIA anunciada na corrida do Texas, a F1 disputou três GPs, Estados Unidos, Brasil e Abu Dhabi. A Ferrari não obteve mais pole positions e a melhor classificação foi o terceiro lugar de Leclerc na última etapa.

Mas a história não acabou aí. Afinal, entre o GP da Bélgica e do México, o anterior ao dos Estados Unidos, a Ferrari disputou seis GPs dispondo dessa importante e decisiva vantagem.

A FIA, pressionada, explicou que faria uma extensa investigação sobre o ocorrido. E foi longa mesmo, três meses.

Resultado secreto

Em pleno teste da pré-temporada deste ano, em Barcelona, dia 28 de fevereiro, a FIA emitiu novo comunicado para informar ter esclarecido o caso. Só que havia algo mais no texto, talvez inédito nos 70 anos de F1: “FIA e Ferrari chegaram a um acordo. Mas para o bem do esporte manterá o resultado reservado entre as duas partes”.

“O quê?”, reagiram os concorrentes da Ferrari. São eles: Wolff, da Mercedes, líder do movimento; Horner, Red Bull, já mencionados; Zak Brown, McLaren; Cyril Abiteboul, Renault; Otmar Szafnauer, Racing Point; Franz Tost, Alpha Tauri; e Claire Williams, Williams.

Foi quando, no dia 4 de março, eles assinaram o manifesto ameaçando ir à justiça comum para obter os detalhes da investigação.

Ficaram de fora apenas a Alfa Romeo e a Haas, times satélites da Ferrari, por competirem com unidade motriz, transmissão e uma série de outros componentes da equipe italiana. Obviamente, pagando muito bem por isso.

A FIA respondeu aos revoltosos já no dia seguinte, 5 de março, explicando que o código desportivo da entidade lhe garante a prerrogativa de não tornar público o resultado de uma inspeção. Como que para desestimular os insatisfeitos de recorrerem aos tribunais de fora da instituição.

Isenção em xeque

Havia um sentimento de revolta no ar. Como é possível a entidade reguladora, controladora do esporte, existente para zelar pela lisura da disputa, estabelecer um acordo secreto com um dos participantes da competição, sendo que ela própria reconhecia que a Ferrari não respeitou a regra?

Entenda o porquê: no comunicado de 28 de fevereiro, a FIA afirmou que, como resultado do acordo, os técnicos italianos a ajudariam a criar um mecanismo de melhor controle para evitar que outro concorrente faça o que eles haviam feito. Ou seja, lançar na unidade motriz um fluxo de gasolina maior do permitido.

Vettel sobe no carro da Ferrari, nos boxes do GP de Singapura 2019 2, de macacão vermelho, capacete e volante na mão para comemorar a vitória
Vettel celebra no GP de Singapura 2019: mais uma vitória contestada
Crédito: Divulgação
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É como a polícia prender um falsificador de notas de dinheiro e fazer um acordo com ele: não será preso porque irá ensinar ao Tesouro da nação como produzir notas à prova de falsificadores.

Dois pesos, duas medidas

As reações de inconformismo com a decisão da FIA crescerem ainda mais. Marko lembrou que na primeira corrida da era da tecnologia híbrida, o GP da Austrália de 2014, seu piloto, Daniel Ricciardo, terminou em segundo, mas foi desclassificado.

Os comissários argumentaram que o sensor de fluxo de gasolina, já distribuído pela FIA, detectou em alguns instantes um valor maior do permitido. Marko deu risada: “Não é o mesmo caso, agora?”

Horner disse algo que, em bom português, a tradução seria “parece coisa de louco”.

Deserção forçada

Dia 17 de março, o grupo dos sete que exigem da FIA uma satisfação de tudo que se passou com a Ferrari, em 2019, perdeu ninguém menos de o seu líder, Wolff, ou a Mercedes, gerando enorme insatisfação nos demais. Sentiram-se traídos.

A ordem veio de cima, do presidente da montadora alemã, o sueco Ola Kallenius. Ele fez um acordo com Michael Manley, presidente do grupo FCA Fiat-Chrysler, para trabalharem juntos em um projeto de reduzir a emissão de gás carbônico de seus veículos de série.

A Ferrari é controlada pela holding Exon, proprietária majoritária também do Grupo Fiat Chrysler.

Mais lenha na fogueira

O tempo não ajudou a arrefecer os ânimos porque, na semana passada, dia 9, Todt deu uma entrevista à imprensa inglesa e declarou algo que estarreceu não apenas a F1, mas o esporte.

Atente a uma de suas declarações: “Se você me perguntasse, eu responderia que adoraria muitíssimo dar detalhes da situação, mas a Ferrari se opôs. Eles foram punidos, mas não posso dizer mais do que isso”.

Se a decisão de manter o resultado da investigação em segredo revoltou boa parte da F1, agora há outro aspecto ainda mais repugnante nesse affair: o poder quase sobrenatural da Ferrari de impedir o presidente da secular FIA de expor o apurado.

Regime de exceção

A sequência de episódios envolvendo Ferrari e FIA, nos últimos meses, lança sobre a própria F1 a suspeita de que, por conta da importância histórica dessa extraordinária equipe multicampeã, quase tudo lhe é permitido.

Parece haver, em alguns casos, uma maneira diferenciada de interpretar os regulamentos técnico e esportivo quando o que está em jogo são os interesses da Ferrari. Existe a falsa impressão de algumas lideranças da F1 de que se a mítica escuderia for preservada a F1 capitaliza com isso.

Ferrari em testes em Barcelona para a temporada 2020. Transparência da categoria está em xeque
Crédito: Divulgação
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A F1 está prestes a iniciar uma nova era com o fim do Acordo da Concórdia, no fim do ano. Este é uma espécie de constituição da F1. A nova era, regida por outra constituição, em debate, foi transferida de 2021 para 2022 em razão da crise também econômica provocada pela Covid-19.

Seria oportuno nos debates para a redação do texto final do novo Acordo da Concórdia que representantes das equipes, da FOM e da FIA repensem, em profundidade, os direitos e as obrigações de cada um. Eque fiquem explícitos no documento, disponíveis para todos. Não sejam mais secretos.

Entenderíamos, assim, quais são as prerrogativas da Ferrari.

Que a importância da Ferrari para a F1 seja observada, tudo bem, mas dentro de parâmetros mais de acordo com o senso de maior justiça que a F1 tanto busca na nova constituição. E necessita. Para sua própria sobrevivência como competição máxima do esporte a motor nesse novo mundo que emergirá da pandemia do coronavírus.

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