Eles invadiram a última linha de montagem do Fusca

Reproduzimos a aventura de dois jornalistas brasileiros que invadiram a última linha de montagem do Fusca no mundo

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Redação WM1
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A paixão dos brasileiros pelo Fusca é meio difícil de explicar. Meio não, completamente. No entanto, para alguns, este fascínio beira a loucura total. Por isso, hoje, no Dia Nacional do Fusca, o WM1 traz um 'causo' verídico de dois jornalistas brasileiros que resolveram 'invadir' a última linha de montagem do 'Besouro' no mundo, localizada no México. O delicioso texto é de Josias Silveira, um dos grandes jornalistas automotivos do Brasil e, caso esteja curioso, um dos dois 'invasores' da fábrica da Volks na terra da comida apimentada. 

"Ninho dos besouros

Mermão! Não sei o que acontece, mas toda vez que você estiver fazendo alguma coisa errada, merda mesmo, e tiver que se explicar, comece dizendo que você é brasileiro. Aí os caras acham que tá tudo bem. Não sei o porquê, mas funciona. Mesmo!

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Havíamos acabado de chegar ao México e o Jason Vogel me dava esta dica. Era minha primeira vez por lá, mas o Jason já conhecia bem a Terra de Zapata. Além disso, ele leva outra vantagem. Olhinhos puxados, cabelo grosso e liso, todos os mexicanos acham que Jason é um patrício. Mesmo carioca e com este nome que mistura personagem americano de filme de terror e passarinho em alemão (Vogel), Jason passa fácil por mexicano.

Estamos num grupo de jornalistas numa viagem da Volkswagen para conhecer um novo carro, mas nosso objetivo principal é outro. O carioca Jason, editor de veículos do O Globo, e eu estamos à caça do último Fusca. Aliás, acho que Jason é mais fanático por Fusca que eu. Em cada país que visita, sempre traz uma foto dele mesmo posando ao lado de um Fusca “local”.

Sobre o fanatismo por carros velhos, a disputa de loucura é grande. Ele já resgatou um velho Ford Prefect inglês (acho que 1951), comprando-o das mãos pintadas de um palhaço de circo. Quando digo que ele é louco, Jason retruca que, em compensação, eu já fiquei com pena de um Fusca velho caindo aos pedaços, adquirindo-o do meu fornecedor de caldo de cana, meu garapeiro favorito. Enfim, em matéria de doideiras envolvendo carros velhos, antigos ou assemelhados, eu e Jason teríamos um honroso empate. Se é que há honra em meio à ferrugem.

Mas, no México, nosso outro objetivo também era quase puramente jornalístico. O Fusca já tinha parado sua produção no Brasil em julho de 1996, mas continuava em linha no México numa versão mais evoluída.

Só que já estávamos no final de 2002 e sabíamos que sua produção não duraria mais um ano por lá (parou em julho de 2003). Assim, além de participar de um longo test drive do Bora/Jetta pelo interior e litoral do México, eu e Jason queríamos um Fusca, um Escarabajo (Besouro em espanhol) ou um Vocho, apelido deste clássico VW no México.

Claro, primeiro pedimos para o assessor de imprensa da VW mexicana. Como bom assessor, não disse não. Mas também não disse sim. Ou seja, não iríamos ter um Vocho, um Fusca para passear.

Viemos dirigindo os Bora/Jetta lá do leste do México e no segundo dia paramos em Cancun. Jason veio com a idéia.

- Vamos alugar um Fusca. A VW é meio envergonhada de produzir um carro tão antigo e não vamos conseguir nada com eles. Não podemos sair daqui sem andar de Fusca.

Ligamos para várias locadoras a procura do Fusca.  Nada. Finalmente um disse que tinha Vocho e que mandaria para o hotel que estávamos. Depois de meia hora, aparecem três mexicanos com três carros para escolher. Nenhum deles era um Fusca. Tinha um carrinho popular, um melhorzinho e até um conversível. Nada de Vocho. E ainda argumentavam com a gente, já que mexicano é tão enrolador quanto brasileiro:

-Como é que vocês vão andar por estas praias maravilhosas com um Vocho. Saiam de conversível. Todas as garotas, las chicas, vão querem pular dentro do carro.

Mesmo com a promessa de “chicas mil”, não topamos. Continuamos a viagem com a ideia de conseguir um Vocho para rodar, fotografar e escrever sobre.  Acabamos chegando a Puebla, onde fica a fabrica da VW. Ótimo! Vamos visitar a linha de montagem do Fusca, a última do mundo. De novo, pedimos ao assessor de imprensa para ir até o “ninho do Fusca”, enquanto ele, entusiasmado mostrava maravilhas tecnológicas, com montagem de carros com laser, robôs, tudo computadorizado:

- Después. Después. Foi a resposta.

E “depois” em linguagem de assessor significa nunca. Jason já estava impaciente.

- Vamos fugir. Tem tanta gente aqui que ninguém vai perceber.

Fugimos do moderno galpão e descobrimos o modesto prédio onde ainda se montava o velho Fusca. Mas havia uma portaria, guardas... todo aquele aparato de segurança de grandes montadoras. Ficamos perto da porta, na sombra de uma arvore, bolando um plano de invasão da última linha de montagem do Fusca no mundo. Tocou uma sirene e todo mundo saiu para um refeitório ali perto. Fomos junto.

Toca outra sirene e todos os operários voltam. Entramos no bolo, batendo papo um com o outro, como se fossemos da turma. Apesar da nossa falta de uniforme, ninguém perguntou nada e fomos parar lá dentro.

Na parede principal da linha de montagem, uma grande imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Todos fazem o Sinal da Cruz. Nós também. Afinal Santa Maria tem várias faces pelo mundo todo e nos sentíamos em frente a Nossa Senhora de Aparecida. Ela é a padroeira do México e também o era da montagem do Fusca. Aqui, Aparecida e Fusca. Lá, Guadalupe e Vocho. Estávamos em casa.

Começamos a andar pela linha de montagem e a conversar com os operários. Tudo bem, cada vez mais em casa.

- Jason. A gente precisa fotografar, o ônibus já deve estar indo embora para o hotel... Só que, quando tirarmos as máquinas para fazer fotos, vai dar merda!

Não deu outra. Empunhamos as máquinas, fizemos uma meia dúzia de fotos e lá veio alguém com cara e jeito de encarregado:

-Que fazem aqui. Por que as fotos?

Jason usou sua própria receita, que ele havia me cantado no começo da viagem:

- Somos brasileños... Nem concluiu a frase.

- Hah bom!! Então está tudo bem. Podem fotografar.

Não sabia se fotografava ou ria. Nunca uma receita aparentemente tão besta funcionou tão rápida e eficientemente.

Acabamos as fotos e corremos para o ônibus, lá do outro lado da enorme fábrica. Um assessor de imprensa preocupado, na porta do ônibus, pergunta onde estávamos.

- A gente se perdeu.

Ele só iria saber da verdade, de nossa “perdida” pela linha de montagem do Fusca no México, quando as matérias fossem publicadas aqui no Brasil, Com direito a Nossa Senhora de Guadalupe e tudo.

Rodamos com os Jetta até a Cidade do México, uma bagunça organizada que lembra as grandes cidades brasileiras. Mais para São Paulo que para o Rio. E um sentimento se tornava cada vez mais forte: o de que não estávamos no exterior, no “estrangeiro”.

Países e desertos são assim: ou você gosta e sente “em casa” ou você não gosta e quer voltar para sua casa. O México é um Brasil que fala espanhol. Aliás, a sensação de estar em casa era tão grande que, quando alguém na rua falava espanhol com a gente era até estranho. A impressão era de que eles deviam falar português.

Além de comer pratos apimentados e beber tequila (em forma de margaritas, a caipirinha mexicana, claro que a base de tequila) precisávamos cuidar de nossa missão nada secreta: rodar com um Fusca mexicano na Cidade do México.

Voltamos a ligar para locadoras. Numa delas – depois de muita conversa tentando tirar o Fusca de nossa cabeça para alugar “coisa melhor” – finalmente a atendente confessou que havia um único Vocho no estoque:

-É novinho, pouco rodado, ninguém quer.

Sorte grande. O Fusquinha era modelo do ano (2002), tinha apenas 200 km rodados e a locadora ficava perto do hotel. Fomos a pé e a diária foi uma pechincha. A garota da locadora ainda ofereceu um VW Pointer pelo mesmo preço. Só que Pointer era exatamente o nome do Gol brasileiro e isto não queríamos de jeito nenhum.

“Abelha em barraca de caldo de cana”, “pinto fuçando no lixo”... várias metáforas serviriam para definir a felicidade de Jason e eu no Fusquinha. Vidros maiores e motor com injeção eletrônica eram apenas algumas das muitas melhorias do modelo mexicano que o Fusquinha brasileiro jamais teve.

Fomos pegando avenidas e saindo para a periferia da Cidade do México em direção as montanhas, fora daquela bacia que forma a região central. Nem prestamos atenção no caminho. Atravessamos bairros pobres, ruas sem asfalto.

-Cara! A gente precisa fotografar este Vochito. Daqui a pouco o sol está se pondo e não tem mais luz. Era o Jason me acordando do transe de rodar com o Fusca vermelho naquelas ruas esburacadas. Um Besouro novo com o velho desenho da época da Segunda Guerra mundial era o bastante para fazer daquela viagem um sucesso.

Vimos um circo e estacionamos no largo pátio em frente à entrada. Num canto, um tranqüilo elefante amarrado nos olhava com cara de curiosidade.

Começamos a fotografar. As pessoas que passavam queriam saber por que fotografávamos um Fusca, algo que nada tem de especial. Começa a longa explicação que éramos brasileiros (o que já limpava a barra, como sempre) e o carrinho não era mais fabricado por aqui. E a resposta era unânime:

- Você pode ser brasileiro, mas ele é mexicano. Era sempre a mesma frase apontando para o Jason, que respondia rindo “um pouco brasileiro, um pouco mexicano”.

Terminadas as fotos, fomos a um barzinho em frente ao circo, tomar um café e comer uns salgadinhos meio estranhos. Claro que apimentados. Jason olha para minha cara;

-Você tem alguma idéia de onde estamos?

- Nenhuma.

Perguntamos para o dono do bar. Surpreso, o mexicano interroga se estamos perdidos. Resposta padrão:

- Somos brasileiros. Aí, na maior boa vontade, ele diz o nome do bairro e explica direitinho o caminho de volta para o centro da Ciudad de México. Pegamos grandes avenidas e uma hora depois o Vocho entrava na garagem do hotel. Para variar, bronca do assessor:

- Vocês sumiram, de novo. Onde estavam?

Contamos que finalmente conseguimos um Fusca e fomos para a periferia da cidade, repetindo o nome do bairro que o dono do bar tinha dito.

- Aquela região é muito perigosa. Vocês podiam ter sido assaltados, sequestrados...

Jason interrompe a frase do assustado assessor;

- Eu sou do Rio, ele é de São Paulo e a gente sabe bastante sobre cidades perigosas. Além disso, tenho cara de mexicano. E quem vai ligar para dois caras, com jeitão de locais, rodando por aí num Fusca. Foi o passeio mais tranqüilo de nossa vida. Até fomos ao circo."

"Este texto é parte de um conto do livro Sorvete de Graxa, do jornalista Josias Silveira. Toda história é verdadeira e todos personagens estão vivos e confirmam seu conteúdo, desde os dois jornalistas até o Fusca e o elefante do circo".

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