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Por dentro do abismo da Williams

Entenda o que fez essa histórica equipe campeã ter de procurar um comprador, em regime de urgência, para se manter viva

por Livio Oricchio

A primeira equipe a manifestar dificuldades financeiras, este ano, foi a outrora poderosa McLaren, que na semana passada anunciou o corte de 1.400 profissionais no seu grupo de empresas, com 4 mil integrantes.  

Na última sexta-feira (29/5) foi a vez da Williams, a melhor dos anos 1990. Sua diretora geral, Claire Williams, disse que faz qualquer negócio. Vende tudo - na realidade, o que restou do grupo -, ou mesmo aceita um novo sócio, desde que disposto a investir bom dinheiro.

conversamos sobre o time com o qual Ayrton Senna conquistou seus três títulos mundiais, em 1988, 1990 e 1991, a McLaren. Hoje é a vez de falarmos da equipe com a qual Senna perdeu a vida, em 1994, tentando sobreviver na F1.

Nesses meus 30 anos de F1 fui testemunha da transição da Williams Grand Prix Engineering de uma organização que foi referência na F1, multicampeã, a um modelo a não ser seguido, última colocada nos dois últimos anos.

Acredito que a melhor forma de entendermos como a Williams pôde decair tanto é descrever, aqui, algumas experiências que tive com a equipe nos autódromos desde 1991.

Em março de 2013, Claire Williams foi nomeada por seu pai, Sir Frank Williams, a nova diretora da equipe. E manteria, ao mesmo tempo, os cargos que exercia até então: diretora de Comunicação, Marketing e Negócios.

É bom lembrar que Frank Williams é o sócio majoritário do Grupo Williams, com 51,3% de participação, seguido pelo americano Brad Hollinger, 11,7%, Patrick Head, 9,3% enquanto 24,1% estão na bolsa de valores de Frankfurt, sob forma de ações preferenciais (sem direito a voto na gestão). O restante, 3,6% pertencem a outros sócios.


“Ela é a pessoa certa”

Descrevo a sociedade para mostrar que a palavra de Frank Williams, até 2012, quando fazia parte do board, o colégio administrativo, era soberana.

Até 2015, Frank Williams ainda aparecia em um ou outro GP. Depois, não o vi mais. Em 2013, parei na entrada do motorhome da Williams, ao lado das mesas, e vi Frank Williams na sua maca vertical. Sinalizei com o indicador se podia me aproximar. Um leve movimento com a cabeça me autorizou.



Dentre as perguntas que fiz foi se a sua filha não se ressentiria da falta de experiência para administrar algo tão complexo como é uma equipe de F1. Com sua voz quase inaudível e respostas monossilábicas, enquanto buscava ar respirando fundo, Frank Williams me disse: “Claire é a pessoa certa para nos levar a sermos campeões novamente”.

O homem que decidia no Grupo Williams tem hoje 78 anos. Em março de 1986, portanto há 34 anos, Frank Williams sofreu um grave acidente de carro numa pequena estrada próxima ao Circuito Paul Ricard, no sul da França, enquanto dirigia – muito rápido – até o aeroporto de Nice, cidade onde resido.


Manter-se vivo, um desafio

A fratura de duas vértebras cervicais o deixou tetraplégico. Parte da enervação da musculatura intercostal, fundamental no processo respiratório, foi interrompida. Até hoje Frank Williams faz exercícios respiratórios diários para se manter vivo.

E não esconde sua paralisia quase total. Deixa que o vejam dispor de uma pessoa em tempo integral para cuidar de si, em tudo. Por exemplo manipular garfos, facas e colheres para alimentá-lo. Frank Williams não movimenta os membros superiores, inferiores e não tem controle dos esfíncteres.

Faz algum tempo que não está no melhor do seu intelecto. Uma ocasião, antes dessa breve conversa de 2015, eu o entrevistei. No meio das perguntas que lhe fazia, Frank Williams me perguntou: “Você conhece o Fernando”. Respondi: “Fernando...”. Ele: “Fernando Alonso”.

Disse que sim, do paddock, por ir a suas coletivas e das várias entrevistas que fiz com ele. Frank: “Eu o admiro muito. Quando vê-lo, mande a minha saudação, por favor.” Respondi que sim, sem entender muito bem.


Intelecto afetado

Mais para a frente na mesma conversa, Frank Williams me perguntou: “Você conhece o Fernando?” Durante alguns segundos permaneci em silêncio. Logo ficou claro para mim. Frank Williams repetiu exatamente o que me falara minutos antes. E eu lhe disse, pela segunda vez, que dentro das minhas possibilidade levaria o seu “oi” a Alonso.

Conto isso para mostrar que o homem que decidiu colocar a filha para comandar um negócio de quase mil profissionais qualificados, faturamento de algo como US$ 200 milhões - R$ 1,1 bilhão -, nos bons tempos, não está com sua área cognitiva tão sã como já foi, uma das razões de seu sucesso.


Direção desconexa

Para profissionais que já trabalharam na Williams, o maior problema da equipe é “de gestão”.

Podemos ir mais a fundo. Na área administrativa a Williams tem uma integrante, Claire, hoje com 43 anos, formada em sociologia e que foi ter seus primeiros contatos com a F1 em 2002, quando tornou-se assessora de imprensa.

No outro pilar de uma organização de F1, o técnico, de 2017 até o ano passado o responsável foi um engenheiro de currículo excepcional, Paddy Lowe, campeão do mundo com a própria Williams - no início dos ano 1990 -, com a McLaren e com a Mercedes - nesta como diretor técnico.

Mas Lowe era o responsável pela eletrônica na Williams, nos títulos de 1992, 1993, enquanto na McLaren respondia para Adrian Neweys nos mundiais de 1998 e 1999, ao passo que na Mercedes apenas coordenava a área técnica, não projetava os carros, função do grupo formado por Geoff Willis, aerodinâmica, Aldo Costa, mecânica, John Owen, o integrador de tudo e desenhista-chefe, dentre outros.

Mas Lowe assumiu a Williams para, a exemplo de Claire, fazer algo que nunca fez na trajetória profissional: trabalhar próximo do grupo de projeto, ao mesmo tempo em que restruturava o departamento.


Smedley, no banco dos réus

Outro dos pilares de um time de F1, o responsável pelo desenvolvimento do carro, a ponte entre o grupo de projeto e o de pista, a teoria e a prática, foi ocupado na Williams, de 2014 até o fim de 2018, pelo engenheiro Rob Smedley, famoso por ter sido o engenheiro de pista de Felipe Massa na Ferrari, de 2006 a 2013.

De novo o time de Frank Williams teve um profissional que iria realizar aquele trabalho específico pela primeira vez em sua carreira. Você contou? Três dos mais importantes profissionais da Williams eram estreantes em suas funções, Claire, Lowe e Smedley. 

No paddock, as críticas ao trabalho de Smedley se tornaram explícitas. E havia o consenso de que a saída, em 2016, do experiente e capaz Pat Symonds, campeão com a Benetton e Renault, fora um duro golpe para a Williams. Symonds entendeu que aquele modelo de gestão nunca funcionaria, confidenciou a amigos.

Lowe repassou parte de suas atribuições a um engenheiro que trabalhou com ele no seu tempo de McLaren, de 2007 a 2012, Doug McKiernan, mas que desde 2015 estava fora da F1.

Ele seria junto de Ed Wood, engenheiro sem tradição de grandes trabalhos, e Dirk de Beer, aerodinamicista dispensado pela Ferrari, o responsável pelo carro da Williams de 2018, sob a coordenação de Lowe.


Não poderia ser diferente

Vocês viram a performance da Williams em 2018 e no ano passado, cujo carro tinha a base do modelo de 2018? Décima e última colocada em 2018, com 7 pontos, ou 1,06% do somado pela Mercedes, 655, campeã entre os construtores. E novamente décima e última em 2019, com um ponto, ou 0,13 % do acumulado pela vencedora, 739, a Mercedes.

O resultado já de 2018 exigiu mudanças importantes. Não era preciso experiência na F1. Foi preciso no mínimo responder aos patrocinadores. Assim, Lowe, Wood, Beer não estão mais na Williams. O modelo deste ano, FW43-Mercedes, é uma obra conjunta do coordenador McKiernan, junto de Dave Wheather, promovido dentro da área de aerodinâmica, e Adam Carter, desenhista-chefe.


Ânimo novo

O que aconteceu na pré-temporada, realizada em Barcelona, em fevereiro? Primeiro FW43 ficou pronto já para o primeiro dia de treinos, 19, um avanço. E o resultado sugere que a Williams pode não ser, sempre, a última no grid, como nos dois últimos anos.



Completou 3.430 quilômetros nos seis dias, não muito diferente, por exemplo, da Red Bull, com 3.630, e o talentoso George Russel estabeleceu o sétimo melhor tempo no geral, com 1min16s871, diante de 1min15s732 de Valtteri Bottas, da Mercedes, o mais rápido, ambos com os pneus mais macios da Pirelli, C5.

São bons os indícios de que a Williams deu um passo à frente este ano, deixou aquela condição de, sabidamente, seus pilotos não terem chance alguma de passar do Q1 na sessão de classificação. Isso porque alguns de seus pilares foram revistos.


Sócios desinteressados

Contribuiu muito para a equipe entrar no marasmo das últimas temporadas a total confiança de Frank Williams na “liderança” de sua filha e o distanciamento do ex-diretor técnico e sócio, homem de grande competência, Patrick Head. Apenas no ano passado Head passou a frequentar vez por outra a fabulosa sede de Grove para fazer as coisas funcionarem, inserir o que não existe, liderança.

E como o outro sócio é apenas simpático, sempre disponível para falar conosco, mas dotado de excessivo espírito de compreensão, Hollinger, o time seguia acéfalo. É por isso que o ex-diretor, Steve Nielsen, hoje no primeiro time da FOM, ao lado de Ross Brawn, disse que os problemas da Williams começavam na sua gestão.

O pessoal de dentro pode não estar vendo o que se passa, mas quem assina o cheque, sim. Só nos últimos anos a Williams perdeu três patrocinadores principais: Martini, Rexona e Rokit, este na semana passada.


Empréstimo salvador

Não fosse o milionário canadense Michael Latifi, pai do piloto Nicholas Latifi, estreante este ano na F1, emprestar US$ 62 milhões – R$ 353 milhões -, o time não teria como seguir operando, apesar de apenas na semana passada seus profissionais poderem voltar ao trabalho, por causa da Covid-19.

Para Latifi se tornar o novo e salvador sócio da Williams ele terá de negociar os 10% que comprou do Grupo McLaren, em maio de 2018, pelo preço de US$ 240 milhões – R$ 1,3 bilhão. Ele é dono, dentre outras coisas, da empresa Sofina Foods, de elevada reputação e com grande participação no mercado canadense.


Minha interpretação

Agora meu entendimento desse imbroglio todo da Williams. As últimas temporadas que a Williams teve carros competitivos foram as de 2002 e 2003, vice-campeã. Por quê? Principal razão: a parceria com uma grande montadora, a BMW.

Havia recursos técnicos e financeiros para a organização de Frank Williams andar dentre os primeiros colocados. Em 2003, venceu quatro GPs.

Não fosse a FIA de Max Mosley obrigar a Michelin a rever seus pneus, a partir do GP da Itália, Juan Pablo Montoya, da Williams, tinha chances de lutar pelo título com a Ferrari-Bridgestone de Michael Schumacher até a última etapa. O alemão foi campeão com 93 pontos diante de 82 do colombiano.

No fim de 2005, a relação entre o diretor da BMW, Mario Theissen, e a direção da Williams estava bem desgastada. A montadora, sem voz ativa com os ingleses, foi para a Sauber. A partir de 2006, a Williams passou a ser cliente dos fornecedores de motores: Cosworth, 2006, 2010 e 2011; Toyota, 2007 a 2009, e desde 2014, Mercedes.

Além de não ter apoio técnico e financeiro de nenhuma montadora desde o fim de 2005, a Williams tem de pagar pelo fornecimento de motores. Desde 2014, início da era híbrida, unidades motrizes, como os motores passaram a ser chamados.


Falta uma montadora

Na F1 de hoje, ultrassofisticada tecnicamente e cara, não ter um grande grupo industrial do lado torna a tarefa de ser competitivo um desafio enorme.

Pois junte essa condição bem distante da ideal com a realidade que descrevi lá em cima, onde os pilares da Williams eram falhos, seus responsáveis teriam de desenvolver atividades que antes não fizeram.

Repare como há sentido nisso tudo, existe na F1 um motivo lógico para as coisas acontecerem ou não. Obviamente há exceções. Não está sendo o caso da Williams.


Conheça melhor Frank Williams

A seguir, algumas coisas que ouvi pessoalmente de Frank Williams, para melhor ilustrar nossa conversa, expô-lo mais.

Durante entrevista, em 1993, eu lhe perguntei o que mais gostaria de ter sido, piloto, como no início de sua aproximação com o automobilismo, ou dono e chefe de equipe. Atente à resposta:

“Piloto, sem dúvida. Por conta da minha paixão pela velocidade eu hoje estou em uma cadeira de rodas”. Revelador, não?

Outra. Perguntei, em 1997, por que ele sempre diz que o título do campeonato de construtores é mais importante que o de pilotos. “Eu comecei com minha equipe no início dos ano 70 e ainda hoje estou aqui. Quantos pilotos daquela época ainda se encontram na F1? Os pilotos passam, as equipes permanecem.”



Mais. Por que o senhor dispensa os pilotos que conquistam o mundial com seu time? Em 1992, depois de Nigel Mansell ser campeão com a Williams, Frank ofereceu um valor que era para o piloto inglês não renovar o contrato. Em 1993 foi para a Fórmula Indy. Em 1996, mesmo sendo campeão, Damon Hill não teve o contrato renovado para 1997.

Em 1993, Alain Prost venceu o campeonato pela Williams e só abandonou a F1, sem desejar, porque Frank Williams lhe disse que iria assinar com Ayrton Senna. O veto a Senna valia apenas para 1993.

A resposta seca e dura de Frank Williams: “Não os vejo mais estimulados na temporada seguinte ao título”.


Investe na equipe

Mais perguntas. O senhor é conhecido por investir muito do que ganha na própria equipe, enquanto outros donos retiram para si boa parte, como é o caso de Eddie Jordan, conforme todos comentam. Procede?

“Não sei o que os outros fazem com o dinheiro. Você esteve na nossa sede, não? Viu nosso túnel de vento? Fomos os primeiros a ter um assoalho móvel, encomendamos a uma empresa canadense. Na F1 se você não investir, não procurar inovar com frequência, fica logo para trás.”

Frank sinalizou para falar mais: “Teve uma época que eu comprava aviões também, não para ter um jato pessoal, mas principalmente fazia isso por negócio, compra e venda”.


Grande arrependimento

 Essa é marcante também. Ouvi ele falar durante uma coletiva, aí por 2006, 2007, quando começou a decadência em curso até agora. Perguntaram qual seu maior arrependimento.

“O maior não sei, um deles foi não ter aceito a proposta de Adrian (o genial projetista Adrian Newey, responsável pelos carros campeões da Williams de 1992, 1993, 1996 e 1997), em 1996. Ele tinha proposta para sair (da Red Bull) e disse que ficaria se eu lhe cedesse parte da equipe, como fiz com Patrick (Patrick Head), em 1977. Eu respondi não.”

Esse homem de ferro, Francis Owen Garbett Williams, de brilhante trajetória no automobilismo, hoje luta, incansavelmente, não somente para manter-se vivo, como para ver sua belíssima obra também sobreviver, ainda que pareça não ter precisa noção do que se passa.


Perspectivas promissoras

O bom dessa história toda é que seja lá quem for que vai ter recursos para investir na Williams provavelmente irá se cercar de profissionais com comprovada experiência e currículo para tirá-la dessa situação de penúria financeira e esportiva e tentar torná-la grande novamente.

Eles vão chegar – provavelmente a Williams encontrará novos sócios – em uma época bastante favorável e única no retrospecto da F1. A partir de 2021 haverá um limite orçamentário, US$ 145 milhões – R$ 826 milhões –, novas regras que restringem bastante o desenvolvimento do carro e um novo critério de distribuição das verbas arrecadadas pela FOM para as equipes, mais justo.

Em resumo, há boas chances, havendo esse investidor, de a Williams crescer novamente. Para o bem da F1.

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