Você já deve estar cansado de ler como a Ford teve a grande sacada com o EcoSport, lá nos idos de 2003. Porém, passados 17 anos, o fabricante tem de tirar outro coelho da cartola, pois vive - de novo! - um momento bastante peculiar no mercado brasileiro. A tradicional marca, outrora uma das “quatro grandes” do país, está naquela fase decisiva dos negócios no país.

Dizer que a empresa está na marca do pênalti no Brasil soaria mais sensacionalista que um programa de briga familiar no meio da tarde. A Ford já viveu fases tão conturbadas quanto, e provavelmente terá outros tipos de turbulência no futuro, comuns a uma montadora deste porte. Mas a situação não é tão tranquila também.
Extraoficialmente, segundo fontes do mercado, há uma pressão da matriz por resultados melhores - em outras palavras, por lucros que justifiquem novos investimentos. A marca, obviamente, se mexe.
A Ford brasileira segue a diretriz global do grupo, de focar especialmente em SUVs, e isso ficou claro recentemente. Focus e Fiesta deixaram de ser fabricados no Mercosul em 2019, mas a marca demorou a cobrir seu portfólio. Só agora trouxe o Territory, um utilitário chinês com custo benefício interessante, mas que briga em uma categoria de médios complicada.
E esse custo benefício talvez não seja o suficiente para bancar este segmento, solidificado com o Jeep Compass na liderança - e com versões mais baratas, como você pode conferir no nosso comparativo.
A categoria ainda tem um produto exaustivamente elogiado, como o Volkswagen Tiguan, e chineses com preços agressivos (caso do recém-lançado Caoa Chery Tiggo 8). Em outras palavras, a vida do Territory só deve melhorar quando (e se) for produzido na Argentina, o que é aguardado para 2022.
Acima do Territory, a estratégia está mais ou menos encaminhada, com o Bronco Sport, que deve ficar na faixa entre R$ 190 mil e R$ 210 mil, e o novo Escape - este, porém, em versão única híbrida, para fazer a ponte até o requintado Edge.
Deve ter ainda a picape médio-compacta Maverick produzida no Mercosul para acabar com a farra da Toro, além de uma nova geração da Ranger - projetos para até 2023/24. Legal, são modelos com valor agregado e que garantem boa rentabilidade, mas isso não basta para uma marca como a Ford.
É preciso ter volume para justificar as fábricas ainda restantes no Brasil - Camaçari (BA) e Taubaté (SP), já que São Bernardo do Campo (SP) foi desativada recentemente. Por isso, a estratégia terá que ser bem mais certeira e meticulosa no andar de baixo. Hoje, com uma gama enxuta, a Ford basicamente se vale de vendas da linha Ka (hatch e sedã).
Por isso mesmo, há tempos deixou de ser uma das quatro grandes. No acumulado dos setes meses do ano pelos dados de emplacamentos da Fenabrave, a Ford está em um tímido sexto lugar, com 7,66% de participação na soma dos automóveis de passeio e comerciais leves. Fica atrás de Hyundai e Renault, que estrearam ou retornaram só nos anos 1990. Muito pouco para a marca da oval que tem 101 anos de atuação no Brasil.
Pois é, como no futebol, camisa e tradição não são mais garantia de vitória. Por isso que, como dito, a estratégia no andar de baixo tem de ser muito pensada - e de olho nos erros do passado. A Ford teve a grande sacada do EcoSport, que vendeu mais que paçoquita de ônibus durante uma década, mas não soube sustentar esse pioneirismo.
A empresa deu aquela acomodada de time que vira o primeiro tempo com 2 a 0 no placar. E não se preparou para o contra-ataque em cascata que veio nos anos 2010. O Renault Duster (2011) nem foi o principal incômodo. O problema foi depois de 2015: Honda HR-V, Jeep Renegade, Nissan Kicks e Hyundai Creta bagunçaram o coreto. E o EcoSport, mesmo em sua segunda geração, lançada em 2013, ficou defasado em questão de meses.
Agora, é preciso pensar muito bem como posicionar o novo EcoSport que está em desenvolvimento. Antes tarde do que nunca, o modelo em nada vai lembrar o SUV atual que ficou pequeno perante os rivais. Terá entre-eixos maior, porta-malas mais generoso e um desenho que, segundo os últimos flagras, tem um quê de Mach-E, o utilitário elétrico do fabricante norte-americano.
O novo Eco será produzido e Camaçari (BA) em cima de uma evolução da plataforma atual. A ideia era lançar o carro no fim de 2021, porém o novo coronavírus adiou os planos - antes de 2022 dificilmente teremos essa terceira geração do SUV. E caberá a este modelo cobrir um leque extenso neste segmento de jipinhos compactos.
A Ford terá de se virar para pegar desde os modelos de entrada até os mais completos, em uma faixa que hoje vai dos R$ 75 mil até R$ 110 mil - com exceções, como o HR-V Touring. Não será fácil, isso porque o Eco vai manter o motor 1.5 três-cilindros da família Dragon - o 2.0 aspirado com injeção direta ainda é dúvida.
É um ótimo conjunto, só que boa parte dos rivais já começaram a migrar para os motores turbo, como Chevrolet Tracker, VW Nivus e T-Cross, enquanto Duster, Renegade e os futuros SUVs pequenos da Fiat devem seguir o mesmo caminho. A Ford até tem a família de motores Ecoboost, mas isso é um passo para encarecer demais as coisas.
Ainda tem mais desafios para a Ford e seu novo EcoSport: superar a alta desvalorização do carro e o “preconceito” de boa parte do mercado, que ainda acha que os carros da marca têm pós-venda caro.
Difícil, né? Mas não dá para duvidar da capacidade da Ford de se reinventar. Não faz muito tempo, ela inaugurou um segmento de SUVs genuinamente urbanos e compactos justamente com o Eco. Na época, início dos anos 2000, se falava que a marca andava mal das pernas e que até poderia sair do país.
A Ford Brasil peitou a matriz - que achava que o Eco era uma maluquice -, fez o Projeto Amazon - que começou com o Fiesta, outro sucesso de vendas - e em 2003 trazia o SUV que ditaria o mercado não só brasileiro, mas global de utilitários. Será que a história se repete?
Todos os meses a coluna Mercado Auto traz análises e perspectivas do segmento automotivo com Fernando Miragaya. Instragram: @fmiragaya. Twitter: /miragaya.



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