Os sinais da Ford Brasil

Fim das operações fabris da marca estadunidense não deveria ter pego este colunista de surpresa. Fica a lição

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Fernando Miragaya
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Jornalista é um bicho orgulhoso e ressabiado por natureza. Quando se tem uma informação muito bombástica, o desconfiômetro é proporcional ao impacto da notícia. É preciso checar, rechecar, buscar outros informantes, ouvir especialistas. Porém, analisar e refletir também fazem parte desse processo - assim como admitir erros e equívocos. A verdade é que o encerramento da produção da Ford no Brasil não é (ou não deveria ser) surpresa. Os sinais estavam bem claros.

Coluna Mercado Auto Miragaya

O mês era agosto de 2020 e o assunto surgiu na nossa reunião de pauta virtual do WM1: uma fonte confiável de um colega disse que a Ford ia sair do país. A informação causou espanto e soou como exagerada. Sim, a marca enxugou o portfólio, tinha fechado São Bernardo do Campo (SP), mas sair agora? Em outras épocas, a filial brasileira também subiu no telhado por diversas vezes, mas seguiu. Um encerramento da produção era até imaginado, mas a longo prazo.

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Claro, fui atrás da notícia. Duas fontes “da cadeia automotiva” garantiram que ouviram o mesmo. Mas depois de alguns dias, ninguém “cravou”. E quando ninguém “crava” uma informação tão impactante,  meu caro, se tende a julgar que trata-se de um alarmismo antecipado. E aqui entra o mea culpa de que faltou sensibilidade para analisar o cenário desse que vos escreve.

Em uma coluna no fim daquele mesmo agosto, abordei a situação da Ford no Brasil. A marca lançava o Territory, via sua participação de mercado se esvair com o tempo e estava em um momento decisivo. Mesmo assim, uma saída parecia precoce.

Por favor, meus óculos

Como escrevi lá no início, os sinais da matriz da Ford eram evidentes, e o ceticismo jornalístico às vezes, nos cega - pelo menos, me acometeu de uma miopia. Não faz muito tempo, o fabricante revelou que o foco da companhia seria em picapes, SUVs e veículos eletrificados. Ora, era só olhar para o Brasil para ver que o país não se adequava à nova estratégia global.

Por aqui, a Ford se limitava a fazer as linhas Ka e EcoSport. Modelos até bons de venda, que em 2020, juntos, anotaram mais de 100 mil unidades em um ano de pandemia, mas que iam contra as diretrizes internacionais fordianas. Vejamos os exemplos especialmente do hatch e do sedã compactos. Carros de volume, mas com margens de lucro modestas e que sequer representavam um projeto global dentro do grupo.

Além disso, daquelas carrocerias que a montadora deixou bem claro que não queria mais. Não custa lembrar que, nos últimos anos, a Ford deixou de fazer o New Fiesta no ABC paulista e no México, acabou com o Fusion e deixou de fazer a linha Focus na Argentina. Olha os sinais…

Mãos atadas?

A questão é: a Ford Brasil não viu os sinais? Poderia ter se mexido para virar um polo de produção de algum SUV ou outro tipo de produto alinhado à estratégia global? Obviamente a filial sabia disso com antecedência. Ninguém acorda em Detroit e pensa: “ah hoje vou fechar aquelas fábricas no país tropical”. Teria tido condições de reverter.

Contudo, vamos combinar que quem manda é a matriz. Você pode ter Jesus Cristo, Buda e Maomé no gerenciamento da linha de produção, mas se ela não der os resultados que a empresa quer, meu chapa, será fechada. É a lógica capitalista.

Mas vamos combinar também que a Ford do Brasil, em um passado recente, teve a faca e o queijo na mão. O EcoSport só nasceu lá em 2003 porque o pessoal daqui peitou o povo de Michigan. E os gringos tiveram de dar a mão à palmatória. Foi o SUV urbanoide que fez a filial voltar a ter lucro, ganhar market share e debutar um novo segmento de mercado mundial.

Não teria sido o momento de a Ford Brasil tentar se tornar um polo de desenvolvimento ou produção de utilitários esportivos, picapes ou de eletrificação? Talvez, mas aí entramos naquele campo complexo, tanto de estratégia e política da própria marca, como da falta de competitividade brasileira.

Conversei com consultores automotivos e especialistas do setor nesses dois dias e todos concordam que, dentro da nova estratégia, pouco havia a ser feito. Só mesmo à base de incentivos a Ford Brasil poderia ter mudado seu destino. E, ao contrário de outras marcas, os aportes da montadora estadunidense aqui rarearam nos últimos sete anos. Mais um sinal...

Uma saída talvez fosse fazer a futura picape Maverick por aqui, a rival da Fiat Toro, mas isso era para ter sido feito pelo menos quatro anos antes. Fato é que fica mais barato - ou menos caro - trazer esse modelo do México, e até mesmo um Territory da China, do que desenvolvê-lo no Brasil.

Pau que bate em Chico...

Nisso, entra o que todo mundo já sabe e que é tema para outra conversa. A carga tributária no Brasil é nociva, a infraestrutura é péssima, a logística complexa e o Rota 2030 não contemplou pontos importantes. Ao mesmo tempo, há uma clara falta de planejamento do governo para com o setor. Já sabemos disso há tempos. É o tal Custo Brasil.

Só que esse custo vale para todos. Não só a Ford padece (ou melhor, padecia) desses mesmos problemas. Os mesmos tributos, frete caro etc recaem, senão igualmente, de forma parecida sobre as operações brasileiras de General Motors, Volkswagen, Toyota, FCA, Hyundai etc.

Mas ao contrário da marca oval, a concorrência continua a investir por aqui. E olha que tem empresa pior das rodas que a Ford no Brasil que terá novos produtos, vide o exemplo do Grupo PSA, donos das marcas Peugeot e Citroën, que prepara lançamentos para 2021 e 2022.

É aquilo: a estratégia da matriz se sobrepõe. “Ah, mas vai investir na Argentina”. Sim, porque a indústria automobilística do país vizinho virou um polo produtor e exportador praticamente de picapes, o que vai de encontro com as diretrizes globais da Ford. Lembre-se que lá são feitos, além da Ranger, VW Amarok, Toyota Hilux, Nissan Frontier, Renault Alaskan e, futuramente, a Peugeot Landtrek.

Por esta razão, não compactuo da premissa de que a Ford abriu a porteira e que outras marcas vão abandonar a produção local no Brasil. Isso inevitavelmente vai acontecer com a Audi, no Paraná, e pode vir a acontecer com Jaguar Land Rover, no estado do Rio, e BMW, em Santa Catarina, pois falamos de produtos de nicho e fábricas com produção de 20 mil/ano.

Mas com as marcas genéricas, que mantêm aportes, difícil acreditar em uma debandada de fabricantes. E como o WM1 noticiou, já tem um monte de montadoras gigantes chinesas de olho nas fábricas da Ford no Brasil para entrar no nosso mercado.

Mesmo assim, não quero repetir o erro. Fiquemos atentos aos sinais.

 

A coluna Mercado Auto é publicada todas as segundas quartas-feiras do mês, com análises e perspectivas do segmento automotivo assinadas por Fernando Miragaya.

Instagram: @fmiragaya

Twitter: /miragaya